Em 2016, coincidem duas datas: o aniversário da data tradicional da concessão da indulgência da Porciúncula, desejada por Francisco para “mandar todos ao paraíso”, e o jubileu da misericórdia, desejado por um Papa que leva o nome de Francisco. Deixando aos historiadores o aprofundamento do debate sobre a indulgência da Porciúncula, queremos nós aproveitar a ocasião desta coincidência de datas, que nos convida a aprofundar o grande tema da misericórdia e do perdão em relação à nossa tradição espiritual franciscana.
Misericórdia é palavra cara a São Francisco, que seguidamente a usa nos seus Escritos e a utiliza igualmente em duas direções, que remetem ao agir de Deus misericordioso e ao nosso agir com misericórdia para com os irmãos. Isto evoca a frase do evangelho que o Papa propôs como “lema” deste ano jubilar: “Sejam misericordiosos como é misericordioso vosso Pai” (Lc 6,36). A misericórdia, que podemos ter nas nossas relações com os outros, está estreitamente ligada à misericórdia que Deus tem para conosco: o amor de Deus é o reservatório inexaurível do qual podemos tirar a misericórdia a ser usada para com o próximo. Todos nós sabemos que conseguimos amar na medida em que descobrimos de sermos amados por Aquele que é a fonte de todo bem. Aquilo que geralmente dizemos do amor é da mesma forma verdadeiro para aquela forma especial de misericórdia que é o perdão. A parábola que Jesus narra para responder à pergunta de Pedro “quantas vezes devemos perdoar?” condena o comportamento do servo que não perdoa a pequena dívida ao seu companheiro, depois que o patrão lhe perdoara um grande débito.
Também neste caso, a razão para perdoar os outros é que nós mesmos fomos perdoados por Deus, como dizemos no Pai nosso, no qual rezamos “perdoa as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos têm ofendido”. Aquele “como”, mais que indicar igualdade, indica a motivação profunda pela qual perdoar aos outros: a partir da certeza de que Deus me perdoa, nasce a exigência de perdoar “como” Ele. É uma outra maneira de dizer que devemos ser misericordiosos “como” o Pai celeste. Se tudo isto for verdadeiro, descobrimos que nos é indicada uma estrada para nos tornarmos mais capazes de misericórdia: crescer na nossa consciência de sermos nós mesmos amados por Deus. Trata-se daquela relação entre o dom recebido de Deus e o dom oferecido aos irmãos, que é tão característico da experiência espiritual franciscana. Na medida em que nós, como Francisco, descobrimos que Deus “é o bem, todo bem, o sumo bem e que somente ele é bom”, torna-se forte em nós a exigência de corresponder a este bem que recebemos, doando o bem que somos capazes. E, para tornar-me mais consciente do amor que Deus tem por mim, devo parar algum momento para refletir, e nos darmos conta que, ainda uma vez mais, somos convidados a cultivar o espírito de oração e devoção, a unir contemplação e ação, se quisermos reencontrar a verdadeira fonte do nosso compromisso e do amor para com o próximo, para reencontrar a força e a energia para gastar toda a vida no serviço aos irmãos e para gerar em torno a nós paz e reconciliação, que são os frutos do amor contemplado.
Com o seu pedido ao Papa de uma indulgência extraordinária para a pequena igreja da Porciúncula, Francisco inventou uma nova maneira para celebrar a superabundância do perdão e da misericórdia de Deus para conosco. Podemos retomar e aprofundar a bela definição de indulgência que Papa Francisco nos oferece na Misericordiae vultus, definindo-a “indulgência do Pai que por meio da Esposa de Cristo alcança o pecador perdoado e o liberta de todo resíduo da conseqüência do pecado, habilitando-o a agir com caridade, a crescer no amor, muito mais do que recair no pecado” (MV 22). Toda vez que recebemos esta extraordinária indulgência do Pai, por meio da Igreja, também nós experimentamos a abundância de misericórdia sobre nós, para nos tornarmos capazes de misericórdia e de reconciliação para com os outros, nas situações concretas da vida. Francisco nos mostra exemplos esplêndidos desta capacidade criativa de promover paz e reconciliação.
Pensemos simplesmente naquele episódio no fim de sua vida, no qual ele reconcilia o Prefeito e o Bispo de Assis, fazendo cantar o seu Cântico do Irmão Sol, com o acréscimo da estrofe do perdão. O antigo biógrafo, ao início desta história, nos diz que Francisco disse aos seus companheiros: «Grande vergonha é para nós, servos de Deus, que o Bispo e o Prefeito se odeiem de tal forma um ao outro, e ninguém tenha o cuidado de colocá-los em paz e concórdia» (Compilação de Assis 84). Francisco não pensa que se trate de uma questão que não lhe diga respeito e sente vergonha pelo fato de que ninguém faça alguma coisa para levá-los à paz. Pergunto-me: quanta vergonha sentimos nós, por que ninguém intervém para sanar os conflitos do nosso tempo? Quanto nos sentimos responsáveis, como Francisco, de levar paz e reconciliação, antes de tudo nas nossas próprias Fraternidades, quando existem divisões, assim como nas lutas políticas, religiosas, econômicas, sociais do nosso tempo? Um tal empenho, tão ativo e militante, nasce da profundidade da contemplação do amor de Deus por mim. Exatamente porque me sinto atingido pessoalmente pela indulgência do Pai, nasce em mim a força, a coragem, a esplendida “loucura” de intervir, como pode fazer um pobre enamorado por Deus: com o canto, não com um solene discurso e muito menos com a força. Francisco, com a sua inteligente simplicidade, não convoca o Bispo e o Prefeito para buscar resolver as suas contendas. Francisco sabe bem que esta não é a sua via: ele, em vez disso, os convoca para escutar um canto, porque somente elevando o olhar mais ao alto, em direção à beleza de Deus, sob as asas da música, os dois contendores poderão reencontrar as razões mais elevadas para a paz.
Nós franciscanos, no mundo de hoje, provavelmente não somos chamados muitas vezes para enfrentar e resolver os complexos problemas do mundo, oferecendo soluções técnicas ou entrando no mérito das difíceis questões, na maioria das vezes maiores do que nós: somos, porém, chamados a encontrar caminhos para animar os homens à reconciliação e à paz, tocando seus corações com o testemunho da minoridade, da simplicidade, da beleza e do canto, da verdade de relações fraternas e imediatas que remetem àquilo que é essencial, que fazem aos homens de hoje entender, como ao Prefeito e ao Bispo de Assis, que vale à pena viver na paz, relativizando os problemas concretos e escolhendo a via do perdão. Falando de indulgência e misericórdia, partimos de um olhar à indulgência do Pai e à sua misericórdia para conosco e chegamos a falar de intervenção na realidade conflitante do mundo de hoje. Poder-se-ia também fazer o percurso inverso: iniciar falando do perdão e reconciliação com os irmãos para chegar a falar da misericórdia de Deus, como faz Francisco no Testamento. Aquilo que importa é que não separemos jamais os dois elementos, porque Jesus no Evangelho ensina que o primeiro mandamento fala ao mesmo tempo do amor a Deus e ao próximo, que não podem ser separados. Este centenário nos ajude a experimentar uma salutar vergonha porque parece que ninguém quer tomar o cuidado de promover paz e concórdia na realidade conflitante na qual vivemos e nos faça crescer na criativa capacidade de encontrar maneiras novas para cantar um canto compreensível aos homens e às mulheres do nosso tempo. Seja nossa vida este canto que, na medida em que é louvor vivente àquele Deus de quem provém todo amor, torne-se provocação eficaz para construir paz e reconciliação.
Roma, 23 de julho de 2016, festa de Santa Brígida, Patrona da Europa.
* Tradução livre do italiano feita por frei João Carlos Karling, ofm, para uso interno e em retiros. (fonte:http://www.festivalfrancescano.it/lettera-dei-ministri-generali-francescani-lviii-centenario-del-perdono-dassisi/).
Fr. Michael Anthony Perry, OFM, Ministro Geral
Irmã Deborah Lockwood, OSF, Ministra Geral
Fr. Mauro Jöhri, OFMCap, Ministro Geral
Fr. Nicholas Polichnowski, TOR, Ministro Geral e Presidente da CFF
Fr. Marco Tasca, OFMConv, Ministro Geral
Tibor Kauser, OFS, Ministro Geral
* Tradução livre do italiano feita por frei João Carlos Karling, ofm, para uso interno e em retiros. (fonte:http://www.festivalfrancescano.it/lettera-dei-ministri-generali-francescani-lviii-centenario-del-perdono-dassisi/).
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